25/02/2008

o angolano dos olhos de ponta-e-mola

Estado civil?, pergunta o juiz. Estou junto com uma melher, responde com um azedume áspero, reforçando o desprezo na sílaba tónica mal formulada. Os olhos do angolano lembram gumes, facas, navalhas de ponta-e-mola. Ao identificar a ascendência, coisa a que está obrigado, troca o nome da mãe. Que mostre os documentos, é a melher que os tem. Ela que entre. Aproxima-se uma ucraniana, a cara escrevinhada de rugas precoces. Vasculha, nervosa, o saco de mão, à procura do passaporte dele, mas tira por engano o dela. Encolhe-se com medo ainda antes de este lhe rosnar baixinho, não é esse. Aos antecedentes criminais diz que esteve preso, que fugiu, é contumaz. Habilitações literárias? Não sabe o que é isso. Se estudou. Desconversa, envergonhado, tenho poucos estudos. Mas tem o quê, a primeira, a segunda classe? Nem isso. É que nunca viveu com os pais, teve uma infância difícil em Angola, na rua, justifica-se. Chegou a ir à escola, afinal? E ele, soltando a ponta-e-mola do olhar, empunhando agora todas as navalhas do mundo, enfrenta o juiz, não, nunca fui. Faz-se silêncio enquanto é tomada a devida nota e menção. Às tantas, deslargando no ar uma réstea de orgulho, mas sei escrever o meu nome, senhor doutor juiz, as facas caídas aos pés, as lâminas rombas dos olhos espalhadas por fim pelo chão.

o recorrente efeminado

Tem um não sei quê de efeminado, o recorrente. Talvez porque o joelho da perna esquerda, ligeiramente enviesado, a adiantar-se timidamente à perna direita; ou porque a popa pintada de preto, muito certa como uma superfície sem falhas, a rematar-lhe a testa saliente. Ou, ainda, da pele acroma e da total ausência de pêlos nas mãos brancas que cravam a bancada, no anelar um refulgente cachucho com uma pedra azul de quilate duvidoso. É certo que os óculos estreitos, meio caídos, lhe conferem uma sensibilidade inesperadamente escolástica, mas a voz de castrato que ecoa na sala não deixa margem para dúvidas. Declara-se inocente, lançando os olhos para o tecto numa expressão dramática de mulher perdida, empurra os óculos para o cimo do nariz adunco que parece o bico de um pequeno agapornis, roda o cachucho falso no dedo e aconchega suavemente a popa. A cabeça posta de lado tamborila, ligeira, numa palicinesia nervosa. Pisca os olhos por detrás das lentes e coloca, com exagerado pudor, o cachucho em frente à cara, como uma dama casta num salão da corte, alargando a gola alta da camisola num ameaço de afrontamento súbito. Com a delicadeza calculada de um mimo, prende o cabelo - que não tem - atrás da orelha, com um gesto curvo, e espeta o polegar direito na testa, tentando alinhar os chakras. A teatralidade dos movimentos amplifica o ruído plástico do blusão de napa, rematado com um fecho dourado de cima a baixo. A advogada, que observa fascinada este teatro de fêmea encurralada, lembra-se de repente da anedota do tubarão e evita a tempo uma gargalhada que transforma em espirro, perante o silêncio acusador, tanto do juiz como do nariz adunco do recorrente, que este tenta, sem sucesso, empinar de despeito.

21/02/2008

o aprumo do cabo serafim

Chove lá fora e o cinzento do dia cobre tudo, como uma espessa película de pó. A sala está fria, o ar condicionado continua avariado e, no cubículo de espera em frente, paira ainda o cheiro ferroso a lama que a dona gracinda das limpezas não conseguiu desincrustar dos cantos. Só um dos candeeiros do tecto funciona mas, mesmo este, ameaça uma intermitência irritante, que desconcentra. Algures ali perto, o pingo de uma torneira alterna com as palavras do juiz, que introduz a diligência. O funcionário, esfregando uma contra a outra as mãos geladas, liga o computador, que aquece lentamente, introduz a palavra passe e tenta contactar com vila nova de poiares, para a videoconferência com a única testemunha dos factos. Sentado numa cadeira em frente a uma pequena câmara encavalitada no monitor, vemos o cabo serafim, aprumado nos seus 22 anos, o uniforme engomado pela mãe. Está nervoso, desconfiado com o desenrolar à sua frente destas novas tecnologias, e mal pode esperar que tudo acabe para voltar ao seu giro pela aldeia, o jacinto tem lá umas garrafas para me dar. A qualidade da imagem é má e o rosto surge-lhe deformado, como se visto por uma lente côncava. O juiz, de auscultadores na cabeça dos quais sai um microfone, cumprimenta-o, testando a eficácia do sistema. Não se ouve um som. Após vários alôs e tou xins como o pastor do anúncio, depois de regulados todos os botões e de muito liga e desliga, a sessão é dada por terminada e o juiz sai da sala num rompante enfadado. O funcionário apressa-se a fechar o computador e a luz, não vá passar por ali o senhor secretário, a deitar contas à vida e ao magro orçamento do tribunal. Entretanto, em vila nova de poiares, o cabo serafim é notificado via telefone de que, no dia tantos do tal, terá que se apresentar a cerca de trezentos quilómetros de casa para confirmar o auto perante o juiz. Suspira, sacode um fio de algodão de um dos galões da camisa branca e sai para a taberna do serafim.

19/02/2008

o jornal que cheirava a baunilha

Em frente ao tribunal há um café, que também serve pratos do dia. De manhã, quase sempre pela mesma hora, a estrela da música pimba coincide ao balcão com o eminente jurista. Moram ambos no prédio em frente. Ela não passa de uma miúda, que parece mais velha na televisão. Prende os cabelos castanhos, muito compridos, com ganchos baratos de cabeleireiro, não tem um traço de pintura e está de chinelos de quarto azuis, enfeitados na ponta com dois coelhinhos bordados. A domesticidade, no entanto, não a prejudica: vê-se que é muito bonita, embora a pele um bocado estragada, talvez das camadas de base, das noitadas, dos holofotes em excesso. Enrosca-se num xaile colorido e usa um perfume adocicado com um travo a baunilha que se espalha pelo café, pousando nos queques e nos bolos de arroz. Folheia as páginas do correio da manhã com um ar compenetrado, o esforço de leitura reflectido na ruga da testa. Ele, de fato completo e gravata, camisa branca e peúgas a condizer, os cabelos grisalhos aparados, traz, na mão esquerda, uma pochete preta onde guarda o dinheiro, o passe da carris e os óculos de ver ao perto. É um professor catedrático muito conhecido, daqueles que ajudam os governos a fazer as leis e que vão de vez em quando ao parlamento e à televisão explicar as minudências dos novos códigos, dos penais aos da estrada. Enquanto ela beberrica a bica cheia, ele engole de um trago a italiana, após o que fica por ali, ao balcão, a trocar banalidades com o dono do café, embebido na áurea de beleza que dela se desprende. Após uma leitura sofrida das páginas cor-de-rosa, a estrela enfada-se, dobra o jornal e pousa-o ao lado do seu cotovelo direito, abanando as pulseiras com motivos étnicos que lhe enfeitam o pulso tatuado. Ele pede-lhe qualquer coisa como se numa confidência, curvando-se um pouco (é mais baixo do que ela), pergunta-lhe se já leu e trocam algumas palavras. Ela diz que sim, mas ele, que enfrenta ministros e jornalistas sem sequer pestanejar, olha-a envergonhado e hesita. Ela insiste e sorri-lhe abertamente e ele, o homem por causa de quem ela não pode conduzir a mais de cento e vinte nas auto-estradas e ficaria seguramente sem carta se estacionasse no passeio em frente, agradece-lhe embevecido, agarrando o jornal e inspirando, guloso, o cheiro a baunilha que se solta no ar.

15/02/2008

o bêbado da unha enorme

Tem uma unha enorme no dedo mindinho. Enorme. A advogada, com um arrepio de nojo, dá por si a pensar com obsessão na serventia daquela unha. Mais de dois centímetros, talvez três. O homem gesticula, rasgando o ar com a unha, e conta a sua história. Ele e mais dois colegas de trabalho, bêbados (assumo que bebi senhor doutor juiz), vão para casa ao fim da noite, seriam aí umas quatro da manhã. Tiram à sorte, vai o Casimiro a guiar. É mandado parar na rotunda, sopra para o balão e quase rebenta a escala; é preso, vai para a esquadra. Ficam os outros dois no carro encostado à berma, a fungar e a pensar na vida, o bagaço a emperrar-lhes o cérebro, os corpos tolhidos de cansaço . De repente, uma ideia de génio. Bora ver o Casimiro?, Bora! A cambalear, o arguido passa para o lugar do condutor, liga a ignição e ziguezagueia o punto até à esquadra. Dá nas vistas, a original condução e, após três tentativas de estacionamento no parque quase vazio (à excepção do carro-patrulha) e de um encosto ruidoso ao contentor do pilhão, é ele próprio detido. Instado a soprar para o balão, diligência quase desnecessária, ganha por pontos ao Casimiro. Confrontado com o resultado da sua própria estupidez, chateia-se, amua e recusa-se a assinar o auto, não sei porque é que me prende, não roubei nada, exclama, espraiando perdigotos pelo ar enquanto espeta a enorme unha na direcção das olheiras do policia de turno que lhe aponta a caneta, presa ao balcão da esquadra por um cordel puído.

14/02/2008

o advogado que era novo e giro (muito giro)

O advogado é novo na comarca. É novo e giro (muito giro), parece um actor conhecido. Trocam-se apresentações, cumprimentos e devidas vénias. A procuradora, apressada, esconde as unhas por arranjar, arrependida por não ter ido de manhã cedo ao cabeleireiro. Coloca a cabeça ligeiramente de lado e mede mentalmente o perímetro abdominal, que massacra às terças e quintas no pilates, grata pelo súbito recato da beca. Mais tarde, prestará uma atenção quase coquete à testemunha, fingindo que a ouve. A funcionária agita-se na cadeira quando o advogado novo e giro (muito giro), lhe entrega a procuração, convencida de que é da puta da idade, a subida dos calores. Olhando-o de soslaio, mordisca ao de leve a bic depois de juntar o papel aos autos, e deixa-se ir numa expressão sonhadora, de heroína de novela. O juiz chama-lhe a atenção para que ponha a prova a gravar; ela ruboresce e pega na cassete áudio, que enfia apressadamente no gravador, enganando-se nos botões. A procuradora, cá de cima, acha-a ridícula, enquanto sacode os cabelos como se faz nos anúncios aos cremes jojoba, aqueles passados no meio da floresta, e trinca ao de leve os lábios, para lhes dar cor.

13/02/2008

o sindroma do sócio-gerente

Às vezes, também acontece. No banco dos réus, pessoas normais, de acordo com critérios de normalidade baseados no preconceito que temos contra quem mais se afasta de nós. Nada de desvalidos, minorias ou escorraçados do sistema mas, antes, um bonus pater familia, esposo e pai amantíssimo, aliança no dedo, camisola de marca, crime de desobediência. Os factos que descreve ao tribunal indiciam uma arbitrariedade policial do tempo da outra senhora. Mas a empatia que normalmente suscita quem se apresenta como vítima é rapidamente substituída pela descrença e o enfado, tal a incongruência da história. Ninguém gosta que lhe chamem de parvo e o interrogatório aperta. A prova compõe-se, com os relatos das testemunhas. Fica entretanto a saber-se que o arguido é sócio-gerente no ramo da construção civil e que o seu carro, o tal que estava mal estacionado, é um mercedes, eu faço o que quero, não me identifico coisa nenhuma. E é toda uma nova série de preconceitos que irrompe na consciência colectiva do tribunal. Está condenado.

o senegalês ilegal

Conversa com o intérprete, gesticula com convicção e sorri a espaços. Está cá há quatro anos, embora nem uma palavra de português. É servente de pedreiro, mas vive da venda ambulante. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras aprestou-se a trazer ao tribunal este homem, claramente nocivo para o país com as suas girafas de pau-santo, colares de falso marfim e relógios chineses. Pressurosos, estes inspectores que aguardam lá fora, na sombra. Apanham muitos ilegais, mas preferem putas e velhos, porque será. Embora este não seja assim tão velho, só parece. Vive sozinho num quarto alugado, está colectado nas finanças e tem o passaporte em dia. Sobre ele impende o paradoxo de muitos imigrantes: precisa de autorização para arranjar trabalho, mas ninguém lhe dá contrato sem ter os papéis em ordem. De repente, escorre-lhe um fio de queixume da voz e azeda-se-lhe o olhar grisalho. Parece que é muçulmano e que lhe serviram porco à alentejana na cela, o prato do dia na cervejaria em frente. Um desperdício, desabafou o secretário, quando lhe entregaram a factura com pingos de gordura para que pagasse, a adiantar pelos cofres.

12/02/2008

a mulher que não se lembrava de nada

Não terá mais de metro e meio, menos de cinquenta quilos, e o cabelo penteado em copa, num tom acobreado que lhe esconde as brancas e a vergonha de ali estar, a olhar de baixo. Tão inesperadamente bêbada, que se espetara contra uma árvore, nos idos de uma destas madrugadas. Não me lembro de nada. Recusara-se a soprar o balão e atingira a dignidade dos agentes, homens com a sensibilidade de meninas, arremessando-lhes injúrias e impropérios vários. Aos costumes, que foi casada com um homem durante doze anos, mas há dez que vive com um rapaz. Há um tom de triunfo neste rapaz, de triunfo sobre a velhice que lhe assenta nas pálpebras como pó. É empregada de limpeza e pede desculpa ao polícia-menina, um homem de metro e noventa que diz ter sido difícil algemá-la porque estava violenta, foram precisos dois colegas. Apesar de limpar chãos todo o dia, vê-se que não consegue sacudir a velhice-pó das pálpebras e que nem o seu rapaz a pode salvar. Não me lembro de nada. O ar triste da mulher enche a sala, encurvando a mobília. Do que quer que se lembre, já é demais.

o cigano que era o irmão dele

A sala agita-se, o arguido é um cigano conhecido nas redondezas, um famoso, descendente de uma longa linhagem de desdenhosos da lei. Os parentes mais próximos, de cinturas largas e gestos desabridos, acumulam-se na sala e no corredor. O juiz pergunta ao arguido se este é o não sei quantos. Que não, que esse era o irmão dele, que morreu da droga na prisão. Insiste o juiz, mas o seu irmão não tinha levado um tiro da polícia? Esse é um outro irmão, intervém o advogado. O juiz não se convence, a conversa cresce e vai animada, o funcionário dá uma achega, nos meios pequenos é assim, todos se conhecem. Às tantas, do fundo da sala, a mãe dos vivos e mortos interrompe, esclarecendo de vez a questão das identidades trocadas. Sorri, contente com a atenção do juiz, do senhor doutor. Mas de repente lembra-se de que fala dos dois filhos mortos e que tem que os carpir, de preferência bem alto para que os parentes, incluindo os que esperam na mercedes amarela, não duvidem um bocadinho que seja do seu desgosto de mãe, que quase a mata. Saca de um gemido gutural que transforma num ai prolongado e a sessão é interrompida. O juiz espera que, como no universo, a ordem se restabeleça de modo natural e por si, demore lá o que demorar. Finge consultar o processo e mergulha os olhos medrosos na resma de papel cosido; polícias não há nas imediações, merda. E pensa que talvez já esteja na altura de começar a refrear esta sua vontade de se tornar íntimo das estrelas.

11/02/2008

O arguido que não queria falar

Com uma denúncia, começa sempre com uma denúncia, naquele café está uma roleta que dá dinheiro. Este país é muito assim, pequenino e medricas, um rosto irrelevante (que seria desprezível se por acaso atentássemos nele) escondido atrás de um telefone, de um email, de uma folha de papel. O arguido vinga-se, já que falaram demais, agora é ele quem não fala. Na verdade não é desforço, é estratégia: o advogado disse-lhe que se cale, que nada confesse e ele cumpre, que o doutor é que sabe. É-lhe perguntado o nome, a filiação, a naturalidade. Olha receoso para a esquerda do púlpito, está na dúvida. Ao aceno subtil do advogado, que finge cofiar a barbicha de bode, responde a tudo, mas responde baixinho. Hesita envergonhado no segundo nome do pai, que não chegou a conhecer. Se já respondeu em Tribunal. E ele mudo, os olhos aflitos e os sons a quererem fugir-lhe da boca cerrada, a cabeça que acena ligeiramente, não se percebe se num não se num talvez. Então o juiz percebe a razão dos silêncios, dos balançares, da estranha linguagem corporal e lembra-lhe de que, quanto aos antecedentes criminais tem que falar e falar com verdade. Ele não acredita, acha que é uma armadilha; um embuste para que desagrafe a boca e confesse o chorrilho dos seus pecados, e por isso continua calado, os olhos agora no chão, fixos nos nós do soalho. Finalmente o advogado, que responda ao meretíssimo, o silêncio vem depois. O corpo descontrai, e o alívio que dele flui quase se ouve contra os quatro cantos da sala. Que não, que nunca respondeu nem esteve preso.