25/03/2008

o ladrão que era boa pessoa

Tem o ar típico do delinquente: magro, o rosto sumido cravado de acne, brinco na orelha esquerda, um blusão velho a imitar os dos universitários norte-americanos que lhe escorrega pelos ombros descaídos. Olha para o juiz como um animal acossado, em relances furtivos, o corpo meio de lado, num trejeito de fuga iminente. Responde por monossílabos ou não responde de todo. Nas bancadas, lá atrás, a namorada dá conta de tudo, enquanto rói as unhas, nervosa, atenta. Para comprovar qualquer coisa que diz, são precisos documentos, que não traz consigo. Então, onde estão? É a minha namorada que os tem. Ela, que ficaram em casa, na gaveta, que se for preciso vai buscá-los. Nome da mãe? Não se lembra. Ouve-se a namorada, Guilhermina de Jesus. Dia em que nasceu? Não tem bem a certeza, três ou quatro de Abril. De novo a voz lá ao fundo, quatro. O que é que faz? Afunda os ombros parcos no silêncio, ajeita-se um pouco mais na diagonal, já só fita o chão. Era toxicodependente, foi-o durante muitos anos, mas agora está recuperado, até trabalha de vez em quando. E faz o quê? A minha namorada procura-me empregos nos jornais, eu vou lá, às vezes fico, outras, não. O juiz olha por cima da cabeça dele, bem, se calhar é melhor passar a fazer as perguntas à sua namorada…. Ele ri aliviado, sabe que pode contar com ela até à morte. E ela responde a tudo: datas de condenações, penas suspensas, penas cumpridas, multas pagas e por pagar. Quando não sabe de cor, recorre a uma pasta de papéis que tem sobre as pernas. Confirma que o pior já passou, que ele se deixou dos roubos e da droga, que quando não trabalha está em casa. O juiz, extravasando da sua função, pergunta-lhe porque é que ela, uma mulher obviamente com cabeça, articulada, que sabe o que quer, está com um indivíduo daqueles?! Apesar da impropriedade da questão, todos os presentes se interrogam o mesmo. E ela, pensativa e compenetrada, reflecte um bocadinho e depois responde, com um halo de ternura na voz, é que ele é boa pessoa, senhor doutor juiz… apesar de todos os disparates que já fez, tem um bom fundo. É boa pessoa. E ele, às palavras dela, destorce o corpo que lhe fugia e endireita-se, os ombros orgulhosos por fim sustentando o blusão coçado, a fuga entretanto adiada.

04/03/2008

a rapariga do umbigo que chorava

Cerca de cinquenta quilos, a sónia cristina. Dezoito anos, empregada de mesa, dona do mundo. Calças de ganga de cintura demasiado descaída e, na barriga branca e plana, um umbigo saliente a lembrar uma hérnia de infância. Agrafada ao umbigo, uma lágrima de vidro branco, que balança quando respira. À espreita, uns pêlos púbicos, quase públicos. Os presentes fixam-se na nudez sem pudor daquela nesga de pele que lhes lembra uma ínsula desgarrada, presa a continente nenhum. Usa a moto para ir trabalhar mas não tem licença. Não tem licença porque precisa de seguro, não tem seguro porque não tem dinheiro. Apesar de tudo, mostra-se confiante, segura de si e dos seus dezoitos anos, que a levarão seguramente a todo o lado, haja gasolina para tanto. Em desafio, atira o umbigo para a frente como que para alguém o apanhar e por momentos parece que cresce. O juiz fala-lhe com calma, tentando entender porque é que atrás dela as bancadas estão sem ninguém, não há um pai, uma mãe, uma irmã, um namorado que a tenha vindo apoiar. Ela diz que se zangou com a mãe e saiu de casa, para nunca mais voltar, e que não tem pai nem namorado. Na voz do juiz, o carinho lépido de um avô que tudo desculpa; lá atrás, um espaço sem eco, de cujo vazio começa subitamente a tomar consciência. E ela, que começara tão dura, tão forte, tão pronta para esmurrar o mundo e contorcê-lo sem dó sob o peso dos seus dezoito formidáveis anos, sente agora o peso desse vazio como uma pedra amarrada ao pés e rebenta em lágrimas de dó. Escorrem-lhe pelos ossos da cara abaixo, treme-lhe a barriga num soluço e parece que até o umbigo, de onde lhe pende a lágrima de vidro que balança como nunca, chora, condoído da sua condição de orfã, que lhe pesa nas costas e a empurra para o mais fundo de si mesma.

03/03/2008

O suinicultor amigo do ambiente

É dono de uma suinicultura e tem, quiçá por osmose, um ar vagamente porcino. A gordura que lhe sobe da barriga e chega ao pescoço entope-lhe a voz, que sai numa espécie de ronco afogado. Apesar do ar pouco apessoado, parece que é doutor, quem diria. A sua empresa descarrega as águas residuais (as domésticas e as industriais) para a ribeira mais próxima, e é por isso que está ali. Discorre poeticamente perante o juiz sobre a importância do ambiente para as gerações futuras e de como a sua empresa cumpre tudo e mais alguma coisa, nota-se um quase tremorzinho na voz de gargarejo. Descreve com orgulho os benefícios de uma ETAR própria que em tempos construiu, tentando convencer o tribunal do depuramento eficaz dos restos dos porcos mortos, mil e quinhentos por semana. Que fez pedidos e aguarda respostas, por isso não tem licenças. Na empresa há também um furo, a mais de duzentos metros, bomba de cinco cavalos. Há anos que vem roubando a água ao domínio hídrico, ou seja, a todos nós, milhões de litros de água que limpam a porcaria que é transformar porcos em chouriços e salsichas. E assim, de facto, se assegura o futuro das gerações: pelo menos não morrem à fome. Por este pecadilho, arrisca quinhentos euros de coima. Quinhentos euros. Que mesmo assim não quer pagar (e por isso está ali). Enquanto o juiz fala, afoga mais uma vez a respiração num ronco e olha de lado para o rolex de ouro no pulso peludo, tempo é dinheiro. Só o ambiente se vende barato, quase dado, neste país.