26/05/2008

a puta desnaturada

Parece ainda maior do que já é, a brasileira, empoleirada numas sandálias compensadas com mais de um palmo de salto, duas tranças de ráfia que lhe apertam o pé grande e moreno, e as unhas enfeitadas com pequenas palmeiras cintilantes. As pernas, altas e grossas, estão presas numas jeans de feira que lhe apertam a parte de baixo das ancas e lhe fazem transbordar a carne em excesso, que sai, aliviada, por cima do cinto dourado de plástico. À vista, uma cicatriz vertical, de cesarianas antigas, que lhe divide em dois a barriga flácida. Um top tigrado, muito curto, esconde um peito pequeno, e o cabelo comprido e seco, pintado de amarelo, revela o preto azulado da raiz. A cara, esbranquiçada e empoada como a de uma cortesã, por onde espreitam os poros abertos de uma pele oleosa, tem traços índios, realçados pelo único brinco, uma pena colorida com missangas na ponta. Os olhos, pequenos e rasgados, afundados em pestanas falsas, encimam uma pose displicente, quase relaxada. No entanto, ela sabe que, da impressão que hoje causar, depende a sua permanência neste país. A voz fina e dengosa contrasta com a expressão dura e resoluta. Trabalha num restaurante, tem homem português e quer ficar cá para sempre. Para o Brasil, para aquela miséria, nunca mais. O Tribunal ri para dentro, desdenhoso, sempre a mesma conversa, estas putas, trabalham todas em restaurantes. Filhos? Que sim, três, pequenos. Cá? Não, no Brasil. Estão com quem? Hesita, faz um esforço de memória, com os avós. A expressão mantém-se inalterada, dir-se-á indiferente. O interrogatório continua, mas o mal está feito. Para o tribunal este é o crime, o de lesa majestade, o pecado capital. Não é o de obviamente se prostituir pelas esquinas da periferia, não é o de ter sido apanhada em flagrante a furtar, nem sequer o de estar aqui ilegal: é o de ser uma mãe desnaturada, a puta. E, em nome daquele artigo no código não escrito que estabelece a ordem natural das coisas, o tribunal condena-a a ser mãe e entrega-a ao SEF, com ordem imediata de expulsão. De volta ao lugarejo infecto no estado de minas, de onde saiu. De volta aos filhos. Impondo-lhe, num arremedo de estupidez ou de mera ingenuidade, a prática forçada dos afectos, como medida acessória.

12/05/2008

o ucraniano que metia medo

Mais de dois metros de altura, quase uma aberração de feira. A intérprete ucraniana, com brincos de filigrana que contrastam com a altivez da sua cabeleira loura, traduz apressadamente. A cada pergunta em português correspondem muitas palavras em russo, numa complexidade linguística que parece reflectir a complexidade de um povo. Os olhos do arguido, de um marinho empedernido, não exprimem qualquer emoção, excepto quando diz ter uma filha. Aí, quase um sorriso. Que é pedreiro cá, mas engenheiro na Ucrânia, embora lhe falte o engenho para mentir com aprumo, tal o chorrilho de mentiras em que se enreda frente ao juiz. Quando é lida a sentença, passam-lhe, pelo azul dos olhos, instintos homicidas e ganha trejeitos de vingança, evocando cossacos ferozes que cortam cabeças a golpes de sabre como quem abre maçãs ao meio. Um arrepio de medo percorre os presentes que, numa espécie de consciência colectiva, se lembram em simultâneo que o edifício não está vigiado, que não há um segurança na entrada, que é livre o acesso aos gabinetes e que a esquadra mais próxima fica demasiado longe. Que cada um entra com aquilo que bem quiser nos bolsos, desde facas a más intenções. E que é só uma questão de tempo até que uma tragédia no tribunal, tantas vezes anunciada, abra com pompa e circunstância um qualquer noticiário das oito.