24/04/2008

a batedeira eléctrica e o cícero da periferia

Naquele pequeno tribunal, a funcionar no rés do chão de um prédio encalacrado numa periferia desolada, a pompa e circunstância do advogado de defesa torna-se ainda mais patética. Qual Cícero no fórum romano, projecta a voz analasada contra as paredes apertadas da sala e, numa profusão teatral de devidas vénias e de vossas excelências, agita a toga com modos teatrais, parecendo um morcego atordoado ao qual falhasse o sonar. No fim de cada frase enfatiza desnecessariamente as sílabas, como se lhes batesse, a fim de evitar a gaguez de criança que teima em trair-lhe a eloquência. Arenga a propósito da garantia mal traduzida de uma batedeira eléctrica à venda nos hipemercados da sua cliente, uma multinacional conhecida. Metade da exibição é vaidade e soberba; a outra metade, é apenas o modo de justificar o dinheiro que ganha. No todo, o tédio mortal com que infecta os presentes. O procurador, apesar do traje de função demodê, é um pai moderno que passa as noites acordado a embalar o filho bebé, o que se vê pelos papos roxos à volta dos olhos, que esfrega com vigor para não adormecer, embalado na fonética solene dos brocardos latinos. Está a gostar tanto de se ouvir, o advogado, que descola do tema e aterra nos princípios gerais do direito, cego à impaciência alheia que cresce na sala como uma coisa palpável, como um gás venenoso ou uma estranha humidade de fungos. A dogmática jurídica aplicada a uma batedeira eléctrica. O juiz boceja, irritado, e pensa nos muitos processos que, naquele momento, se empilham periclitantes na quietude do seu gabinete. A cada minuto que passa, aumentam as hipóteses de uma coima estupenda e brutal se abatar sobre a multinacional, afinal, o aborrecimento, a atenção forçada e o tempo perdido, terão de ser devidamente vingados. E assim se fará justiça.

13/04/2008

a vizinha-esfinge e o velho dos olhos baços

Na verdade, ninguém na sala quer saber se a mercearia avançou dois ou dez metros para a frente, nem se para tanto havia licença e o tédio preenche-se com o dever de ofício. Para além do inspector da câmara, o estado arrolou o vizinho do lado, porque quem prevarica também incomoda. Entra o dito, contrariado, a primeira vez num tribunal, a notificação amachucada na mão que treme, o corpo quebrado pelos quase noventa anos, sem olhar a vizinha que, sentada no banco dos réus, o mira de mãos postas e costas direitas, como uma esfinge que não o conhecesse. Pedem-lhe que confirme que foi ela que lhe entrou com o alumínio pela varanda e lhe roubou a vista para as rosas bacará no terraço, do outro lado do portão. Que lhe roubou a vista para a dona arminda, aquela rapariga praí de uns sessenta anos, que dobrava para ele o traseiro graúdo, apertado na bata de poliéster, quando regava as rosas pela tardinha. Mas, agora, os seus olhos baços estacam no verde do avançado e na janelinha falsa, aberta a meio, que parece vigiar-lhe os rituais de velho. Perdeu a privacidade, foi, senhor manel?, pergunta o juiz e ele, enrolando os lábios engelhados nas gengivas nuas, acena ao de leve, sem discernir que não foi ele que perdeu a privacidade, mas a arminda que a ganhou, o traseiro dela agora arredado dos seus vislumbres levemente obscenos, embaciados pelas cataratas. Então, de que modo é que essa senhora aí atrás o prejudicou? Sem responder, levanta-se e deixa na frente do juiz duas fotografias em que, de ângulos diferentes, se vê uma construção grosseira de alumínio e chapas de zinco a cobrir um portão entre dois prédios de marmorite. Aponta para uma varanda escondida e recuada, a sua. O juiz pergunta-lhe se aquilo o incomoda e ele diz que não, pensando sem querer nas rosas da rapariga, da arminda, na rosa gigante, desabrochada e plenipotenciária que é o traseiro da arminda. Então, entalado entre a pena pelas tardes hoje passadas à sombra do avançado e a vergonha pela delação, desata a chorar. Que não queria ir ali, que o obrigaram, virando-se para trás e implorando perdões e clemências à vizinha-esfinge que, às tantas, nas tintas para a postura adequada que até então mantivera e indiferente à ordem do tribunal para que fique sentada e se cale, se levanta e lhe afaga, desajeitada, os ombros convulsos, Deixe lá, senhor manel, eu sei que não foi o senhor, não fique assim, eu sei que não queria vir, não se apoquente que ainda lhe dá uma coisa. Deixe lá.