20/01/2009

o surfista que queria comer a juíza

Entra na sala de audiências como quem entra num bar para passar um bocado, talvez fazer conversa, engatar umas miúdas. É bonito e ainda novo, mas não demais, e a barba por fazer dá-lhe um ar vagamente vicioso que anuncia emoções subterrâneas. Olha para as mulheres à sua frente - as que o vão acusar, defender e condenar - de modo apreciativo e com o à-vontade de quem julga conhecer-lhes os segredos. Ar de cama, pensa a juíza, uma mulata gira de idade indefinida, cruzando as pernas debaixo da mesa. O mais engraçado é que nem costuma beber; aliás, nem costuma conduzir. Mas a reunião acabara tarde e os três espanhóis com quem trabalhara o dia todo haviam insistido em conhecer a movida lisboeta. Sem paciência nem imaginação, despachara-os até às docas onde, por entre marinheiros em terra, monhés insistentes e casais suburbanos, comeram um peixe pouco fresco de aquicultura que o empregado lhes jurara ser de mar. Algum vinho tinto e, no fim, um puro malte que engoliu com esforço, mas que acusou no balão ao primeiro sopro. Sem saber como, viu-se conduzido à vigésima terceira esquadra de trânsito, ele e mais meia dúzia de pós-adolescentes de consciência alterada e com pressa de se enfiarem nos buracos nocturnos da vinte e quatro de julho. Não é muito alto, mas tem uma estrutura larga e granítica de macho alfa que lembra um muro ao qual nos podemos encostar. Aos costumes diz nada, acentuando a profundidade da voz com um olhar de longo alcance, o que faz com que a juíza desaperte a beca, encalorada, e sorria em demasia só porque ele nunca foi condenado antes. A tez morena e as calças de ganga sem cinto, que descaem na perfeição mesmo abaixo dos abdominais, conferem-lhe aquele ar de desportista saudável e desleixado, talvez surfista nas horas vagas, que dá às mulheres a vontade de mexer, ajeitar, compor - e depois submeter a provas de resistência. Finge atentar nas palavras da defensora, uma estagiária escolhida à pressa de uma lista qualquer, que se engasga ao alegar em sua defesa, mas os olhos, inchados e aureolados de negro pelo pouco que dormiu, seguem na verdade a curvatura da nuca da juíza e descem até ao decote, entrevendo, pela beca semi-aberta e contra a pele dourada escura, um soutiã de renda branca. Já a despira por completo quando acorda para a voz que lhe debita a sentença, mil euros de multa substituíveis por trabalho comunitário. Sentindo trepar por si uma excitaçãozinha familiar, pensa que não se importava de comer a juíza, belo exemplar de uma corporação profissional que ainda não tivera o prazer de adicionar ao seu vasto curriculum, mas cujo exercício quase discricionário de poderes vários lhe alimenta fantasias secretas de submissão. Comer a juíza, que exerce uma função pública e aplica a justiça em nome do povo, contará como trabalho a favor da comunidade?. E ninguém na sala entende porque parece sorrir, divertido, ao ser-lhe dito que ficará sem carta durante três meses, a título de pena acessória.