02/06/2008

a juíza grávida

A meretíssima é uma mulher desagradável, e até um bocadinho feia. Os lábios, inchados pela gravidez de quase nove meses, sustentam um buço incipiente e retorcem-se num estranho tique, a cada resposta que lhe desagrada. Afasta, com uma impaciência agreste, a cabeleira escura da cara, onde uma pigmentação castanha lhe esbate as feições imperfeitas. Apesar do tempo ameno, mostra-se encalorada e sopra para o interior do decote aberto, enquanto empurra a beca para trás como se renegasse a função. O arguido desfia o seu rosário de contas mal-paradas mas ela nem o ouve, está farta. Funga ruidosamente e respira como quem se afoga, ao mesmo tempo que se imagina no quarto do filho, com as suas cortinas em voile compradas na la redoute e os frisos azuis ao longo da parede branca, em cima do tapete de ursos e comboios que só ela pisa descalça, a dobrar os pijamas de algodão com cheiro a sabão novo e a ensaiar canções de embalar, as fraldas amorosamente empilhadas na gaveta do vestidor. Está tão pronta para o receber, que está prestes a deixar de o estar. No pulso, um relógio grande, de homem velho, com uma correia de pele preta e grossa, contrasta com as suas saliências feminis, exacerbadas pelo fulgor da maternidade próxima, e marca ao segundo a sua repulsa em estar ali, a ouvir os filhos dos outros e impedida de escutar o seu. Os arguidos, que vão entrando na sala, respiram fundo e sorriem, ao verem uma mulher como juiz, ainda por cima grávida, confiantes no tradicional dom feminino da bondade e do perdão. Mas cedo se apercebem, ao segundo ou terceiro resfolegar, ao terceiro ou quarto sopro, ao quinto ou sexto tique dos lábios entumecidos, de que antes um homem, por deus, antes um homem.