22/07/2008

um dia

"No banco dos réus, um mecânico efeminado, que sonha, húmido, com o cristiano ronaldo, esconde os nervos e as mãos nos bolsos das calças, escrupulosamente rotas, milimetricamente descaídas. Do tecto rachado pinga o ar condicionado, manchando o banco em madeira do público, que se acotovela, curioso, do lado oposto. Um balde azul de plástico, cortesia da dona olinda das limpezas, engole vagarosamente a água e a dignidade do tribunal. A funcionária grávida, de joelhos inchados e pele oleosa, chora na casa de banho e finta a fúria sibilina da colega da frente, uma balzaquiana de maminhas empoladas pelo top de licra, refém da ovulação e do programa informático, ambos inúteis. A fotocopiadora, encravada no on, espalha um calor doentio pela secção e o ruído de fundo de um rádio a pilhas embala a pré-reforma do silva do arquivo. Nas alegações de uma bagatela penal, um advogado pomposo de punhos puídos e meias solas novas, cita Santo Agostinho e discorre livremente sobre os benefícios do azeite. A videoconferência está avariada e dispensa-se a presença da testemunha, que empurra para a carteira a justificação da falta e vira costas, rangendo entre dentes o tempo perdido. O senhor secretário, da porta entreaberta, controla as idas e vindas e lambe a ponta do lápis, fazendo as contas ao papel higiénico. Da janela, vêem-se os ciprestes do cemitério apontando umas nuvens escuras que puxam o céu para baixo como se o cosessem à terra. Na única pastelaria em redor, os pratos do dia são alheira com ovo e favas com entrecosto, que as mulheres encaixam, gulosas, nas ancas, aplacando a culpa com aspartame no café. A estagiária, roendo a bic, simula enlevo pelo ilustre patrono de aliança no dedo e este incha e esmera-se no requerimento para a acta, espanejando-se muito e floreando o banal, numa espécie de rito de acasalamento. Na sala dos arguidos, um ucraniano magro de olhos de águas turvas e nariz aquilino lamenta-se no ombro de quem o deteve, enquanto um cigano, belíssimo, se mostra indiferente aos cuidados grasnados pelas mulheres da família, em inquieto alarido. Estas, com os seus traseiros enormes e os rabos de cavalo que chicoteiam o ar, com o despudor das vozes grossas e a latitude dos movimentos, oprimem o espaço que se torna exíguo. Nos calabouços, um bom pai de família vomita a ressaca no chão de cimento e as obras continuam no andar de cima, impedindo que todos se ouçam. Da sala de audiências só constam mulheres, excepto os arguidos. Lá mais para a tardinha, quando o recorte das nuvens se começa a confundir com o dos ciprestes, o in dubio pro reo começa subtilmente a ser substituído por outra dúvida, o que vou fazer para o jantar."



(24 de Outubro de 2007)