24/04/2008

a batedeira eléctrica e o cícero da periferia

Naquele pequeno tribunal, a funcionar no rés do chão de um prédio encalacrado numa periferia desolada, a pompa e circunstância do advogado de defesa torna-se ainda mais patética. Qual Cícero no fórum romano, projecta a voz analasada contra as paredes apertadas da sala e, numa profusão teatral de devidas vénias e de vossas excelências, agita a toga com modos teatrais, parecendo um morcego atordoado ao qual falhasse o sonar. No fim de cada frase enfatiza desnecessariamente as sílabas, como se lhes batesse, a fim de evitar a gaguez de criança que teima em trair-lhe a eloquência. Arenga a propósito da garantia mal traduzida de uma batedeira eléctrica à venda nos hipemercados da sua cliente, uma multinacional conhecida. Metade da exibição é vaidade e soberba; a outra metade, é apenas o modo de justificar o dinheiro que ganha. No todo, o tédio mortal com que infecta os presentes. O procurador, apesar do traje de função demodê, é um pai moderno que passa as noites acordado a embalar o filho bebé, o que se vê pelos papos roxos à volta dos olhos, que esfrega com vigor para não adormecer, embalado na fonética solene dos brocardos latinos. Está a gostar tanto de se ouvir, o advogado, que descola do tema e aterra nos princípios gerais do direito, cego à impaciência alheia que cresce na sala como uma coisa palpável, como um gás venenoso ou uma estranha humidade de fungos. A dogmática jurídica aplicada a uma batedeira eléctrica. O juiz boceja, irritado, e pensa nos muitos processos que, naquele momento, se empilham periclitantes na quietude do seu gabinete. A cada minuto que passa, aumentam as hipóteses de uma coima estupenda e brutal se abatar sobre a multinacional, afinal, o aborrecimento, a atenção forçada e o tempo perdido, terão de ser devidamente vingados. E assim se fará justiça.