04/03/2008

a rapariga do umbigo que chorava

Cerca de cinquenta quilos, a sónia cristina. Dezoito anos, empregada de mesa, dona do mundo. Calças de ganga de cintura demasiado descaída e, na barriga branca e plana, um umbigo saliente a lembrar uma hérnia de infância. Agrafada ao umbigo, uma lágrima de vidro branco, que balança quando respira. À espreita, uns pêlos púbicos, quase públicos. Os presentes fixam-se na nudez sem pudor daquela nesga de pele que lhes lembra uma ínsula desgarrada, presa a continente nenhum. Usa a moto para ir trabalhar mas não tem licença. Não tem licença porque precisa de seguro, não tem seguro porque não tem dinheiro. Apesar de tudo, mostra-se confiante, segura de si e dos seus dezoitos anos, que a levarão seguramente a todo o lado, haja gasolina para tanto. Em desafio, atira o umbigo para a frente como que para alguém o apanhar e por momentos parece que cresce. O juiz fala-lhe com calma, tentando entender porque é que atrás dela as bancadas estão sem ninguém, não há um pai, uma mãe, uma irmã, um namorado que a tenha vindo apoiar. Ela diz que se zangou com a mãe e saiu de casa, para nunca mais voltar, e que não tem pai nem namorado. Na voz do juiz, o carinho lépido de um avô que tudo desculpa; lá atrás, um espaço sem eco, de cujo vazio começa subitamente a tomar consciência. E ela, que começara tão dura, tão forte, tão pronta para esmurrar o mundo e contorcê-lo sem dó sob o peso dos seus dezoito formidáveis anos, sente agora o peso desse vazio como uma pedra amarrada ao pés e rebenta em lágrimas de dó. Escorrem-lhe pelos ossos da cara abaixo, treme-lhe a barriga num soluço e parece que até o umbigo, de onde lhe pende a lágrima de vidro que balança como nunca, chora, condoído da sua condição de orfã, que lhe pesa nas costas e a empurra para o mais fundo de si mesma.