Estado civil?, pergunta o juiz. Estou junto com uma melher, responde com um azedume áspero, reforçando o desprezo na sílaba tónica mal formulada. Os olhos do angolano lembram gumes, facas, navalhas de ponta-e-mola. Ao identificar a ascendência, coisa a que está obrigado, troca o nome da mãe. Que mostre os documentos, é a melher que os tem. Ela que entre. Aproxima-se uma ucraniana, a cara escrevinhada de rugas precoces. Vasculha, nervosa, o saco de mão, à procura do passaporte dele, mas tira por engano o dela. Encolhe-se com medo ainda antes de este lhe rosnar baixinho, não é esse. Aos antecedentes criminais diz que esteve preso, que fugiu, é contumaz. Habilitações literárias? Não sabe o que é isso. Se estudou. Desconversa, envergonhado, tenho poucos estudos. Mas tem o quê, a primeira, a segunda classe? Nem isso. É que nunca viveu com os pais, teve uma infância difícil em Angola, na rua, justifica-se. Chegou a ir à escola, afinal? E ele, soltando a ponta-e-mola do olhar, empunhando agora todas as navalhas do mundo, enfrenta o juiz, não, nunca fui. Faz-se silêncio enquanto é tomada a devida nota e menção. Às tantas, deslargando no ar uma réstea de orgulho, mas sei escrever o meu nome, senhor doutor juiz, as facas caídas aos pés, as lâminas rombas dos olhos espalhadas por fim pelo chão.