21/02/2008

o aprumo do cabo serafim

Chove lá fora e o cinzento do dia cobre tudo, como uma espessa película de pó. A sala está fria, o ar condicionado continua avariado e, no cubículo de espera em frente, paira ainda o cheiro ferroso a lama que a dona gracinda das limpezas não conseguiu desincrustar dos cantos. Só um dos candeeiros do tecto funciona mas, mesmo este, ameaça uma intermitência irritante, que desconcentra. Algures ali perto, o pingo de uma torneira alterna com as palavras do juiz, que introduz a diligência. O funcionário, esfregando uma contra a outra as mãos geladas, liga o computador, que aquece lentamente, introduz a palavra passe e tenta contactar com vila nova de poiares, para a videoconferência com a única testemunha dos factos. Sentado numa cadeira em frente a uma pequena câmara encavalitada no monitor, vemos o cabo serafim, aprumado nos seus 22 anos, o uniforme engomado pela mãe. Está nervoso, desconfiado com o desenrolar à sua frente destas novas tecnologias, e mal pode esperar que tudo acabe para voltar ao seu giro pela aldeia, o jacinto tem lá umas garrafas para me dar. A qualidade da imagem é má e o rosto surge-lhe deformado, como se visto por uma lente côncava. O juiz, de auscultadores na cabeça dos quais sai um microfone, cumprimenta-o, testando a eficácia do sistema. Não se ouve um som. Após vários alôs e tou xins como o pastor do anúncio, depois de regulados todos os botões e de muito liga e desliga, a sessão é dada por terminada e o juiz sai da sala num rompante enfadado. O funcionário apressa-se a fechar o computador e a luz, não vá passar por ali o senhor secretário, a deitar contas à vida e ao magro orçamento do tribunal. Entretanto, em vila nova de poiares, o cabo serafim é notificado via telefone de que, no dia tantos do tal, terá que se apresentar a cerca de trezentos quilómetros de casa para confirmar o auto perante o juiz. Suspira, sacode um fio de algodão de um dos galões da camisa branca e sai para a taberna do serafim.