10/10/2012

o urso das bilhas de gás

Tem um cadastro que pesa como a bíblia, engrossando um expediente à partida fininho, que se descreve num parágrafo: condução sem carta, apresentação às nove horas e trinta para julgamento em processo sumário, uma chapa e já está. O arguido, de nariz vermelho beberrão e modos bonacheiros, encaixa a barriga nas pernas quando se senta e  se desbronca, confessando muito para além do preciso. Que o seu trabalho é entregar bilhas de gás, pelo que conduz diariamente. Facto comprovado pelas inúmeras e idênticas condenações, em multas nunca pagas nem cobradas, num acervo que revela a benevolência cega do Tribunal. As feições da procuradora endurecem, perante a ligeireza, quase desdém, que empresta às palavras e aos actos. O juiz, comediante falhado, provinciano de códigos próprios e ancestrais, alvitra em tom jocoso que, se calhar, o arguido até entrega bilhas aos próprios polícias que o detiveram, ao que este, não sabemos se por ingenuidade ou esperteza saloia, aquiesce sorridente, diz que sim, que até conhece alguns deles, ao que a sala sorri com o juiz, reverente e empática. Este encarrilha na piadola e alvitra que se calhar chateou algum deles, para estar ali. A conversa atinge foros de ópera bufa e o constrangimento espalha-se pela sala como gás pimenta, intoxicando os que assistem, excepto aqueles dois homens, entretidos como se no café ou numa conversa de futebol. A procuradora, cada vez mais irritada com cada um deles à sua maneira, remete contra o arguido nas alegações, invocando, num tom glacial, a reiterada indiferença do mesmo perante a Lei, pedindo pena de prisão efectiva. Morrem os cretinos sorrisos e a expressão do dito passa num ápice de bonacheira a matadora, semicerrando os olhos na direcção da procuradora, num trejeito mudo. Esta aguenta-lhe o olhar, lembrando-se, uma vez mais, que naquele velho prédio de habitação com aspirações a domus justitiae, toda a gente entra e sai com o que quiser na cabeça e nos bolsos, sem seguranças ou polícias por perto. Ela sabe que é mais dia menos dia. O juiz também. Por isso escuda a falta de coragem – ou, convenhamos, o mais puro bom senso – num pedido de relatório social, para decidir só depois, muito depois. Justiça adiada por trinta dias e figas para que aquele bicho, encurralado mas pouco, agora de expressão agreste e parecendo ainda maior e mais gordo, como um urso, não apareça na leitura da sentença, uma coisinha má. Por favor, que nesse dia lhe dê uma coisinha má .