19/10/2012

a advogada do diabo e a coca na gaveta

Sou toxodependente mas não vendo, balbucia amedrontado. É assim que começa, tráfico de menor gravidade, oito sacos de heroína em doses individuais no bolso, mais uns quantos escondidos em casa. Tem trinta e cinco anos mas parece cinquenta, a droga fê-lo uma sombra de si, magra e engelhada. O dinheiro que tinha quando foi detido? Veio da venda de coisas usadas, numa feira de periferia da qual as senhoras chiques que procuram velharias junto ao panteão nacional seguramente nunca ouviram falar. E onde as arranja, essas coisas usadas?, escarafuncha-lhe o juiz na ferida. Que as encontra no lixo, aqui e ali, enquanto baixa os olhos porque lhe custa mentir. Sabe que não convence ninguém, nem a ele próprio. O procurador queda-se, nada a perguntar, enquanto a defensora, mais advogada do diabo que do arguido, frustrada por estar a perder o seu tempo quase pro bono com um pequeno delito naquela sala bolorenta, entala o próprio cliente, perguntando-lhe com acinte como, se era apenas para consumo, tinha tantas doses embaladas em seu poder. Baralhado, o arguido soçobra, vencido, num silêncio magoado. Entra o agente que fez a detenção. Um homem novo, alto, de cabelo curto, máquina três, e uma ligeira popa, se calhar máquina cinco, discreta; de pose militar mas não arrogante, com bíceps tão trabalhados que parecem rasgar a farda azul. Quando vira as costas e se retira, o vislumbre da arma no coldre e as algemas a baloiçar de encontro às nádegas bem definidas provocam um frisson na advogada, e a fera interior amansa. O procurador, imune aos encantos musculados do representante da ordem pública, pede a condenação, bem sabendo que esta será de prisão, pois nisto do tráfico há que dar o exemplo. Mas, no fundo, gostaria de uma absolvição. Pois também ele, quando o stress aperta e a fobia social resvala para o pânico, abre a gaveta trancada e dá uma snifadela rápida, antes de entrar para os julgamentos e ter que alegar de pé com todos os olhos postos em si.