25/02/2008

o recorrente efeminado

Tem um não sei quê de efeminado, o recorrente. Talvez porque o joelho da perna esquerda, ligeiramente enviesado, a adiantar-se timidamente à perna direita; ou porque a popa pintada de preto, muito certa como uma superfície sem falhas, a rematar-lhe a testa saliente. Ou, ainda, da pele acroma e da total ausência de pêlos nas mãos brancas que cravam a bancada, no anelar um refulgente cachucho com uma pedra azul de quilate duvidoso. É certo que os óculos estreitos, meio caídos, lhe conferem uma sensibilidade inesperadamente escolástica, mas a voz de castrato que ecoa na sala não deixa margem para dúvidas. Declara-se inocente, lançando os olhos para o tecto numa expressão dramática de mulher perdida, empurra os óculos para o cimo do nariz adunco que parece o bico de um pequeno agapornis, roda o cachucho falso no dedo e aconchega suavemente a popa. A cabeça posta de lado tamborila, ligeira, numa palicinesia nervosa. Pisca os olhos por detrás das lentes e coloca, com exagerado pudor, o cachucho em frente à cara, como uma dama casta num salão da corte, alargando a gola alta da camisola num ameaço de afrontamento súbito. Com a delicadeza calculada de um mimo, prende o cabelo - que não tem - atrás da orelha, com um gesto curvo, e espeta o polegar direito na testa, tentando alinhar os chakras. A teatralidade dos movimentos amplifica o ruído plástico do blusão de napa, rematado com um fecho dourado de cima a baixo. A advogada, que observa fascinada este teatro de fêmea encurralada, lembra-se de repente da anedota do tubarão e evita a tempo uma gargalhada que transforma em espirro, perante o silêncio acusador, tanto do juiz como do nariz adunco do recorrente, que este tenta, sem sucesso, empinar de despeito.